quinta-feira, dezembro 29, 2005

Das sínteses originais (4): aristocrata

É muito instrutivo observarmos a entrada de um criado de mesa na sala de jantar do hotel. Quando transpõe a porta da sala de jantar, opera-se uma mudança súbita na sua pessoa. A posição dos ombros altera-se; todas as inferioridades e pressas e cóleras desaparecem num instante. E ele desliza pelo tapete, numa solene atitude sacerdotal. Lembro-me do nosso maître d'hôtel assistente, um italiano temperamental, parando à porta da sala de jantar para se dirigir a um aprendiz que partira uma garrafa de vinho. Erguendo o punho por cima da cabeça, punha-se a vociferar (felizmente a porta era mais ou menos à prova de som).
"Tu me fais - E atreves-te a dizeres-te criado de mesa, tu, meu filho da mãe? Tu, criado de mesa! Não tens categoria nem para varrer o chão da casa de putas da tua mãe. Maquereau!"
Por fim, quando as palavras lhe faltaram, virou-se para a porta; e, enquanto a abria, soltou ainda um último insulto como o Cavaleiro do Oeste no Tom Jones.
A seguir, entrou na sala de jantar e singrou através dela com a travessa na mão, com uma elegância de cisne. Dez segundos mais tarde, inclinava-se cheio de reverência diante de um cliente. E não podíamos deixar de pensar ao vê-lo inclinar-se e sorrir, com o seu sorriso de criado de mesa experimentado, que o cliente deveria, sem dúvida, sentir-se envergonhado ao ser servido por tão requintado aristocrata.


Down and Out in Paris and London (1951) de George Orwell

citado por Erving Goffman in A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias

1 comentário:

Joanmirovic disse...

Sim senhor estou a ver que andas a ler umas coisas engraçadas. Este é daqueles comments que faço só porque me apetece escrever qualquer coisa, estou naquele estado apetece-me-dizer-tudo-mas-não-me-apetece-escrever-um-post, mas claro com elegancia e sem deixar passar que estive a ralhar com o empregado.